Muito se fala sobre comunidades virtuais e da criação de espaços digitais. Elas existem sob muitas naturezas: grupos de interesses específicos em redes sociais, fandoms de bandas e famosos, fóruns de temas técnicos e até mesmo comunidades de marcas que vivem brigando entre si (Apple x Samsung, Playstation x Xbox).
Mas estamos realmente falando de comunidades quando tratamos desses grupos?
A mais clássica definição de comunidade, apresentada na sociologia alemã através de Ferdinand Tönnies, debatia o termo em oposição ao conceito de sociedade: enquanto comunidades (Gemeinschaft) são pautadas por relações de laços fortes, primários, afetivos e de forte tradição, como em famílias e vilas rurais, as sociedades (Gesellschaft) se definem pelos relacionamentos pautados em interesses e contratos, mais comuns nas grandes cidades modernas1. Com diferenças não tão relevantes para o nosso debate, essa definição se perpetua, ainda que por vezes com outros termos, como solidariedade mecânica (para comunidade) e solidariedade orgânica (sociedades modernas) na sociologia de Durkheim2.
Já é possível notar que é difícil conciliar essa definição clássica com o que chamamos hoje em dia de comunidades digitais. É altamente contestável afirmar que qualquer um desses ambientes virtuais possa ser descrito como tradicional, baseado em fortes laços primários. Eles são, na verdade, antes de tudo, pautados por relações efêmeras, com muita frequência até mesmo anônimas.
Mas se podemos afirmar que as comunidades virtuais não cabem na definição clássica do termo, devemos fazer uma pergunta ainda mais importante: então o que elas são? Estamos falando de algo que é completamente outra coisa, ou uma nova versão daquele antigo conceito?
A virtualização dos laços efêmeros
Quando a sociologia clássica discutiu esse tema, o tamanho das comunidades era relevante para a sua definição: os laços fortes existiam porque a quantidade de pessoas era reduzida. Há uma dificuldade intrínseca em expandir grupos sociais sem efemerizar as relações através da divisão do trabalho social. Igualmente, os laços fracos eram característicos de sociedades; não existia a possibilidade de um grupo pequeno e totalizante com relações tão frágeis. Isso mudou com a internet.
O primeiro passo da modernização das relações sociais gerou a transição das comunidades tradicionais para sociedades amplas de divisão do trabalho. O enfraquecimento de laços se deu nas relações locais, mas também em vínculos dos indivíduos com o seu trabalho e com a sua vizinhança.
Hoje podemos afirmar que a internet gerou um passo adicional: a virtualização das relações sociais permitiu a criação de pequenos grupos, pautados por paixões em comum, que nos habituamos a chamar de comunidade. Muito do que vemos nelas contradiz a conceituação clássica do termo:
- Carecem de proximidade física. As proximidades são passionais, intelectuais, hedônicas, etc..
- As relações são fragmentadas: o usuário não vive na comunidade, mas acessa a comunidade. Alguns com muita frequência, outros uma única vez (como um indivíduo tirando uma dúvida de Linux em um fórum, por exemplo), alguns são ativos, outros apenas acompanham. E os laços entre os membros existem por tanto tempo quanto durarem os interesses e paixões por aqueles temas. Pode ser uma hora, pode ser décadas.
- As relações muitas vezes possuem uma superficialidade metrificada. O status dos membros da comunidade pode ser indiretamente pautado por likes, posts, compartilhamentos. Para bem da verdade, qualquer comunidade, mesmo as antigas, tinham o prestígio como um ponto central – aqui ela se torna metrificada, simplificada e até mesmo mais transparente.
- Inclusivas e exclusivas. A maior parte delas é muito fácil de entrar, mas muitas podem ter exclusões simbólicas frequentes por meio de algoritmos ou cancelamentos.
Os tópicos acima demonstram itens em que as comunidades virtualizadas são mais frágeis dos que as tradicionais. No entanto, como apontou Mark Granovetter, existe força mesmo nas redes de laços fracos3. De forma quase paradoxal, esse tipo de organização social é mais eficaz na disseminação de informações novas. Isso ocorre porque laços fracos conectam muitos grupos diferentes: é fácil transitar para outro fórum, para outra rede social, coletar informações, voltar e continuar conectado. Ns comunidades tradicionais, com laços sociais fortes, o círculo social daquelas pessoas é mais fechado, de maneira que já compartilham entre si os mesmos conhecimentos e opiniões. Com isso, as informações se sobrepõem umas às outras.
Muito do otimismo no começo da internet, especialmente com a criação de um mercado de ideias, nasceu justamente da visão de que laços fracos podem ser muito agregadores em matéria de informação. Pierre Lévy chegou a nomear esse fenômeno como inteligência coletiva – quando, através da colaboração, indivíduos agregam conhecimentos que estão originalmente dispersos4. Projetos open source carregam muito bem o espírito dessa definição.
A Força Superior
As comunidades do passado eram fortemente tradicionais e tinham a religião como um aspecto central em sua estrutura. A crença em uma força superior era um local comum entre comunidades bem distintas.
Embora a religião não seja um tema relevante para a conformação de comunidades virtualizadas, elas certamente possuem uma força superior. Efetiva, mesmo quando ignorada. Quando falamos de X/Twitter, Instagram, Facebook, Bluesky, Threads e Reddit, não estamos tratando apenas de espaços sociais, mas, antes de tudo, de interfaces mediadas por algoritmos. As relações comunitárias estarão limitadas pelas regras criadas por forças externas a elas: comportamentos que podem gerar banimentos, disponibilidade de funcionalidades, limites de caracteres, dentre muitas possibilidades. Elas até podem ter seu próprio regimento legal, mas estão submissas, antes de tudo, ao ordenamento jurídico de uma força superior que pode bani-la por completo.
Com isso seria fácil de questionar a autenticidade de algumas comunidades. Elas podem crescer por impulsionamentos artificiais ou através de interações que acontecem, literalmente, entre robôs. Uma comunidade repleta de bots é uma comunidade humana? Na definição clássica, esses grupos se pautavam pela geração de coesão social; mas elas continuam merecedora desse conceito quando sua fundação é dirigida por um sistema arquitetado para gerar lucro e, muitas vezes, conflito?
A força superior das comunidades virtualizadas não é uma crença, é uma realidade. Há pouco espaço para negociar com essas divindades; elas não ouvir as preces do grupo nem realizar seus desejos. Isso nem é almejado, de tão fútil que a tentativa pareceria.
A cura técnica (Pharmakon)
Ainda que efêmeras, as comunidades existem como espaços de pertencimento. Não é raro uma pessoa se identificar ou se descrever a partir do seu grupo – geek, swiftie, open sourcerer, Marvel fãn, dentre tantos outros. Há dois pontos predominantes aqui, a identidade e a troca de informações.
Bernard Stiegler cunhou o conceito de Pharmakon para tratar de possíveis caminhos de cura através do uso da técnica5. Aqui o sentimento de pertencimento pode ser aplicado dessa forma. Como comentamos anteriormente, o mundo moderno enfraqueceu laços e transformou as relações em efemeridades. A internet virtualiza essa efemeridade e rompe as barreiras geográficas para aproximar pessoas que possuem paixões e interesses em comum. Assim criam redes que se apoiam psicologicamente e, por vezes, de forma material, com trocas de recursos. Esse ato de pertencer a algo pode preencher vazios existenciais deixados pelo enfraquecimento dos laços. Contudo, o uso do termo grego Pharmakon é intencional pela sua dubiedade: pode ser traduzido tanto como remédio quanto como veneno, reforçando uma característica de incerteza que parece perseguir qualquer análise moral do mundo virtual recentemente.
O mundo continua fragmentado, mas pelo menos agora cada fragmento do seu Eu, ainda que estilhaçado, pertence a algo. O problema acontece quando ele acaba por pertencer a algo ainda mais nocivo do que o vazio.
Comunidades como significados compartilhados
Então voltamos à primeira pergunta: estamos tratando de comunidades aqui? Em um livro bastante clássico chamado Comunidades Imaginadas, Benedict Anderson descreve como senso comunitários de nações inteiras podem surgir a partir de um senso de pertencimento gerado por símbolos, narrativas e instituições em comum: isso está presente em uma bandeira nacional, no hino, em mitos locais compartilhados6. Uma pessoa conhece uma parte muito pequena da nação em que vive, mas compartilha com ela mitos e crenças que todos conhecem e cultuam. Você consegue reconhecer alguém da sua nação mesmo sem saber que ela pertence à sua nação.
As comunidades virtualizadas não são tão amplas e não possuem delimitação geográfica. Mas são, antes de tudo, definidas pelos significados que compartilham uns com os outros: possuem sua própria linguagem, suas piadas internas, suas referências prestigiadas. Geertz vê as comunidades em geral como fenômenos culturais e simbólicos7. Quando tratamos desses grupos digitais, estamos falando de símbolos muitas vezes compreendidos apenas pelos seus membros. Um outsider que cair de paraquedas e uma comunidade de Python não vai compreender nada do que está sendo debatido naquele lugar. E não se engane, isso não acontece somente em grupos epistêmicos. O mesmo aconteceria com um outsider em uma comunidade de Kpop ou ouvindo gamers conversando enquanto jogam. A compreensão dos símbolos depende da efetivação de um processo de iniciação de seus membros.
Estamos sim tratando de comunidades, mas de um tipo específicos – novo e temporalmente localizado. Não são as comunidades que Tönnies e Durkheim descreveram na sociologia clássica. Se na era moderna a humanidade caminhou de uma comunidade de laços fortes para uma sociedade de relações efêmeras, a contemporaneidade, com o surgimento da internet, mesclou as duas realidades. Por um lado, é como se buscássemos retornar àquele sentimento de pertencimento que existia nas comunidades tradicionais, preenchendo virtualmente um vazio coletivo. Por outro, mantivemos a liberdade moderna, transitando entre interesses e paixões de forma fragmentada.
As comunidades virtualizadas são comunidades reais, só que diferentes. Antes o pertencimento comunitário era total e tão eterno quanto a sua vida. Hoje achamos novas formas de pertencer comunitariamente, e pertencemos a muitas delas de forma simultânea, mas também vivemos de renúncias, e nos afastamos tão facilmente quanto nos aproximamos.
- TÖNNIES, Ferdinand. Community and Society. East Lansing: Michigan State University Press, 1957. ↩︎
- DURKHEIM, Émile. De la division du travail social. Paris: Félix Alcan, 1893. Tradução para o inglês: The Division of Labor in Society. New York: The Free Press, 1997. ↩︎
- GRANOVETTER, Mark. “The Strength of Weak Ties”. American Journal of Sociology, v. 78, n. 6, 1973, p. 1360-1380. ↩︎
- LÉVY, Pierre. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, 1999. ↩︎
- STIEGLER, Bernard. Technics and Time, 2: Disorientation. Stanford: Stanford University Press, 2008. ↩︎
- ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a expansão do nacionalismo. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. ↩︎
- GEERTZ, Clifford. The Interpretation of Cultures: Selected Essays. New York: Basic Books, 1973. ↩︎
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